Estudo do STARQ revela que 67% dos trabalhadores de arqueologia já foram alvo de assédio sexual
A profissionalização da Arqueologia Portuguesa, a que se assiste desde o final dos anos 90, tem levado à necessidade de caraterização do setor, nomeadamente através do primeiro estudo sobre sexismo, assédio e abuso/agressão sexual realizado pelo Sindicato de Trabalhadores de Arqueologia. Seguindo estudos realizados noutros países, pretendeu-se analisar comportamentos sexistas e de assédio e abuso sexual em Arqueologia, assim como, compreender as consequências destas práticas a nível pessoal e profissional.
Em 2021, o Sindicato dos Trabalhadores de Arqueologia, elaborou um inquérito de modo a aferir práticas de sexismo/assédio/abuso sexual em ambiente profissional e/ou académico na arqueologia portuguesa.
Os resultados1, já publicados2, são inquietantes (68,3% relataram ter sido alvo de comportamento sexista, 66,9% foram vítimas de assédio sexual e 14,4% de agressão sexual), denotando ainda falta de consciencialização sobre o tema, ausência de códigos de conduta e ineficácia dos canais de denúncia. As vítimas sentem dificuldade em continuar a trabalhar na área da Arqueologia, vendo afetadas a sua saúde e vida pessoal. É atestada, igualmente, a existência de um ambiente de trabalho tendencialmente machista, com elevada frequência de episódios de assédio sexual sobre estudantes ou trabalhadores de Arqueologia, tanto em meio académico como profissional.
Considera-se que os resultados demonstram um problema sistémico no setor arqueológico, normalizando o sexismo e o assédio verbal, há décadas. Transparece uma escassa consciencialização sobre o tema, grave ausência de códigos de ética ou de conduta e opacidade nos canais de denúncia, o que resulta ao autossilenciamento das vítimas por medo de represálias. Por outro lado, a forte componente de trabalho arqueológico no âmbito da construção civil – um meio predominantemente masculino
– contribui para a aceitação generalizada dessas práticas no ambiente laboral.
Acredita-se que este estudo possa contribuir para colocar o tema em debate entre profissionais, instituições e empresas, incentivando à reflexão, à implementação de medidas de prevenção ao assédio e abuso sexual em Arqueologia e ampliando a discussão sobre as relações de poder, frequentemente baseadas e circunscritas às questões de género que ainda pautam a atividade arqueológica em Portugal, em prol de uma prática arqueológica mais segura, justa e igualitária.
Essas situações são referidas como estando na origem da mudança de local de trabalho, abandono total do trabalho ou estudos em Arqueologia, problemas na vida pessoal a médio/longo prazo, afetando a saúde mental:
“foi-me diagnosticado stresse pós-traumático, ataques de ansiedade e pânico, e às vezes ausência de memória, após um processo de depressão, para a qual tive de ter acompanhamento psicológico.”3
Para o combate a estas nefastas realidades, são propostas três linhas de ação: educativa, preventiva e mitigadora.
A nível educativo, é imperativo falar de sexismo, assédio e abuso sexual como problemas reais em vários domínios e disciplinas científicas em Portugal, nomeadamente na Arqueologia, sensibilizando possíveis vítimas ou agressores.
No âmbito da prevenção, deve ser promovida e exigida a implementação de códigos de conduta nas várias organizações (empresas ou universidades), mas também em centros de I&D, laboratórios, projetos, campanhas de campo e reuniões científicas. A legislação portuguesa exige que as instituições com mais de sete trabalhadores
disponham de códigos de conduta, mas em alguns casos são inexistentes, à revelia da lei; em outros, não os divulgam, e há casos em que foram elaborados sem a participação dos trabalhadores.
Finalmente, em caso de sexismo/assédio/abuso, as instituições (empresa, laboratório ou centro de investigação) devem ter mecanismos de reação previamente definidos, abrangendo o processo de denúncia, e definindo, igualmente, as consequências para o assediador. Acima de tudo, a vítima deve ser sempre protegida e respeitada, assim os mecanismos de denúncia devem ser seguros, a sua receção assegurada por mais do que uma pessoa (com contactos diretos via email/telefone), preferencialmente externas às equipas. Estes mecanismos e penalizações para assediadores devem estar claramente expressos nos códigos de conduta.
Alguns resultados-chave
Os resultados apresentados decorrem da realização de um inquérito por questionário online 4 a uma amostra da população trabalhadora/estudante em Arqueologia. Responderam ao inquérito 263 pessoas.
1. Sexismo
- 68,3% dos inquiridos assumiu já ter sido alvo de comportamento sexista no seu local de trabalho.
Vários relatos retratam circunstâncias de assédio sexual e de um ambiente laboral sexista:
“Para evitar (...) assédio, mudei hábitos de locomo ção até o trabalho, evito falar com operários das obras, evito a identificação da pronúncia brasileira do meu português.”
“Trabalhadores de obra que emitem comentários sobre as mulheres, convidam para sair. Engenheiros, arquitetos que não tomam em conta o que diz a Arqueóloga por ser mulher”.
Sobre situações de gravidez e maternidade:
“Foi muito difícil ultrapassar o sentimento de ser inferior. Não me terem sido dadas as mesmas oportunidades de progredir, aprender, assumir novas responsabilidades foi bastante prejudicial em termos curriculares”
“(~) já me reduziram o prémio em 30% por ter gozado licença de maternidade mesmo tendo conseguido cumprir todos os objetivos”
“deixei de ser aumentada com a desculpa de que era mãe e por isso pagava menos IRS que os meus pares”.
O sexismo é sentido também no meio académico, particularmente em contexto de ensino:
4 Ficha Técnica: resultados de um inquérito online que decorreu em Junho e Julho de 2021. Foi coordenado pela direção do Sindicato de Trabalhadores em Arqueologia (STARQ). O universo da sondagem é constituído por indivíduos residentes em Portugal com dispositivos de acesso à internet, que considerem ser estudantes e/ou trabalhadores na área da Arqueologia. Não houve seleção de respostas tendo todas (100%) sido consideradas válidas por cumprirem os parâmetros mínimos de resposta e credibilidade da informação. Foram validadas 263 respostas ao inquérito, embora o total de respostas a cada questão, por serem facultativas, tenha variações. Registaram-se 61,5% respostas do género feminino e 36,6% do género masculino. Identificou-se com género não-binário/outro 1,9% da amostra. Os inquiridos tinham entre 19 e 71 anos de idade, sendo que 71% se concentrava entre os 26 e os 45 anos. O grau académico mais frequente é o mestrado (47,5%), seguido da licenciatura (33,3%).
“Chamarem -me burra indiretamente (mas de forma percetível o suficiente para se levantarem risos abafados) em plena aula. Questionarem se de facto estava bem (em tom de gozo) em Arqueologia por ter as unhas arranjadas. Serem tão paternalistas comigo a meio duma aula por não terem percebido a pergunta que fiz, que me estavam a explicar as coisas como se fosse acéfala, estava a ser tão mau que um colega meu interveio e pôs um travão (na altura senti que não podia dizer nada porque seria vista como mal-educada/histérica). Desde este último acontecimento nunca mais me voltei a sentar na fila da frente daquela aula”.
2. Assédio Sexual
- 66,9% dos inquiridos respondeu ter sido alvo de pelo menos uma situação de assédio sexual em contexto de trabalho em Arqueologia.
- É nos inquiridos entre os 26 e 45 anos que se verificam mais resposta positivas.
- A maioria das vítimas era do género feminin (66,7%), no entanto 31,6% eram indivíduos masculinos e 1,7% não binários.
- Sobre quem foi o autor do episódio de assédio a situação mais frequente foi a que foi provocado por um “colega de trabalho em situação de igualdade hierárquica” (57,2%), seguida de por “alguém externo à equipa de trabalho” (53,2%). O assediador era geralmente do género masculino (84,7%).
Alguns entrevistados foram assediados mais do que uma vez e por diferentes assediadores, em concreto aos 173 entrevistados que relataram ter sido assediados, correspondem, pelo menos, 337 situações de assédio.
- A maioria das vítimas era estudante de licenciatura (22,4%), seguindo-se “técnicos ou assistentes de campo” (13,8%).
- 71,2% das vítimas de assédio referem não ter reportado a situação por inexistência de mecanismos de denúncia no seu local de trabalho.
Alguns relatos:
“Tenho algum receio de trabalhar sozinha com homens no geral, (...) em escavações de verão houve alguns momentos menos bons, particularmente num cenário em que um professor tirava fotografias às alunas enquanto trabalhavam, em diferentes “poses” sem elas saberem (...). Estas (...) situações têm imenso impacto na minha vida e na minha saúde mental. Alterei a forma como me visto para não ser minimamente “desejável”, mesmo que isso implique passar imenso calor e me dificulte o trabalho. São inclusivamente questões que me fazem querer mudar de carreira.”
“(...) vários trabalhadores da construção civil demonstram comportamentos impróprios e
linguagem ofensiva perante a mulher. Fui muitas vezes assediada, sendo tal sido considerado
como um elogio. Atiram-me água para me ir embora porque “estava a distrair os homens” e“não os deixava fazer o trabalho deles”. O constante assédio sexual a que um arqueólogo é sujeito ao longo da sua carreira resulta num desgaste psicológico. Nenhuma denúncia realizada é alguma vez levada a sério”.
A inconsequência das denúncias e não atuação por partes dos empregadores, professores ou técnicos de higiene e segurança é constantemente mencionada, acrescentando um sentimento de stresse, vergonha e desproteção à vítima:
“Fui assediada durante cerca de 6 meses pelo manobrador que acompanhava. Fiz queixa ao meu coordenador, ao encarregado da obra e à engenheira responsável. Ninguém fez nada para alterar a situação. Um dia pedi a um colega para trocar comigo, já não conseguia lidar com a situação. Quando a minha coordenadora descobriu, obrigou-me a voltar para a minha frente inicial e continuar a trabalhar com o manobrador em questão. Todos os dias era constantemente abordada com convites, piadas inapropriadas e pressão psicológica. A pessoa em questão espalhou por toda a obra que tínhamos um caso. Todos os dias recebia dezenas de chamadas e mensagens do mesmo. Chegou ao ponto, em que nem sequer saía de casa sozinha, com medo de me cruzar com ele na rua. Na altura, estava sozinha, longe de casa e sem ninguém a quem pedir ajuda. Pedi várias vezes para mudar de obra, como não o fizeram, acabei por me despedir”.
Abuso ou agressão sexual
- 14,4% dos inquiridos foi alvo de abuso ou agressão sexual enquanto trabalhava em Arqueologia.
- As vítimas representavam 16% dos inquiridos do género feminino, 10,4% do masculino e 40% dos indivíduos não-binários.
- A maioria das vítimas era estudante de licenciatura/mestrado (35%) ou responsável científico (25,5%).
- Sobre o agressor e a sua posição hierárquica em relação à vítima, as respostas foram diversas, sendo as mais frequentes "alguém hierarquicamente superior" (44,4%) e "alguém externo à equipa" (38,9%). O agressor era maioritariamente do sexo masculino (79,5%).
- Não existiam mecanismos de denúncia de assédio pré-estabelecidos em 85,4% dos locais de trabalho. Apenas 26,3% das vítimas denunciaram a agressão sexual.
As respostas qualitativas ajudam a ilustrar algumas das circunstâncias em que ocorre o abuso sexual:
"(...) um colega uma vez colocou a mão na minha perna, no carro, sem eu ter dado qualquer motivo para isso”.
Verificam-se também relatos de abuso em meio académico e, sobretudo, com alunos em contexto de voluntariado:
“Ouvíamos recorrentemente histórias, trabalho de campo (…) em que se passava tudo. (…) se verificou que realmente há de tudo, álcool, drogas, abusos sexuais com e sem consentimento, humilhações públicas. Efetivamente os superiores, neste caso professores académicos sabem destes acontecimentos e nada fazem (…) deixando os alunos que não possuem maturidade suficiente, entregues a predadores sexuais” e “(...) em plena escavação um homem (que se considerava numa posição acima dos voluntários) apalpou o rabo de uma das voluntárias. Parece que não houve quaisquer consequências para o perpetrador, nem por parte dos responsáveis da escavação, que se encontravam presentes durante o evento”.