Manifestação no Chile pelos direitos das mulheres Pablo Sanhueza – ReutersNa sombra da pandemia da Covid-19 está a desigualdade de género, que se tornou mais evidente neste último ano de crise. Na comemoração do 25.º aniversário da Conferência de Pequim sobre os direitos das mulheres, António Guterres descreveu a pandemia como uma “guerra oculta contra as mulheres” e alertou que, se não forem tomadas medidas de imediato, “a Covid-19 pode apagar uma geração de frágeis avanços em direcção à igualdade de género”.

Em 1995, na Conferência de Pequim, 189 países concordaram em priorizar a “participação plena e igualitária das mulheres na vida política, civil, económica, social e cultural ao nível nacional, regional e internacional, assim como erradicar todas as formas de discriminação com base no género”.

Um quarto de século depois é possível dizer que houve um progresso no que diz respeito aos direitos das mulheres, mas, embora importante, foi uma evolução “gradual, desigual e insuficiente”, lê-se no estudo da ONU Mulheres em que foram avaliados os direitos das mulheres 25 anos depois da Conferência de Pequim. Há menos crianças a verem o direito à educação a ser-lhes privado, mas 32 milhões de meninas continuam a não ter acesso à escola, principalmente em altura de pandemia e encerramento dos estabelecimentos escolares. A percentagem de casamentos infantis também diminuiu nos últimos 25 anos, mas a pandemia colocou mais 500 mil crianças em risco de serem forçadas a casar antes do 18.º aniversário.

Estima-se que 80 por cento dos planos agendados nesta conferência não foram cumpridos. Os números são claros ao apontar que as mulheres são muito mais frágeis perante a pobreza, não ocupam metade dos cargos de maior poder - apesar de representarem mais de metade da população, apenas um em cada quatro assentos parlamentares são preenchidos por mulheres -, sofrem mais violência e ocupam a maior parcela dos empregos mais precários.

Ao longo da última semana, representantes dos Estados-membros da Organização das Nações Unidas (ONU) reuniram-se na Assembleia Geral em comemoração do 25.º aniversário desta conferência histórica sobre as mulheres, numa altura em que a desigualdade de género é ainda mais evidente em contexto de pandemia.

As primeiras estimativas apontam para quase 435 milhões de mulheres no nível da pobreza em 2021, com a pandemia a contribuir para um aumento de onze por cento, para além de uma maior carga de trabalho no núcleo familiar e um maior risco de perda de cargos de chefia nas instituições e empresas.

Os números referentes à violência doméstica reflectem também uma realidade alarmante: uma em cada cinco mulheres sofreu de agressões físicas ou sexuais por parte do seu parceiro em 2019, um número que agravou este ano durante o período de confinamento.

“Enquanto nós cuidados, eles repartem o poder”

Anita Bhatia, vice-directora executiva da ONU Mulheres, sublinha que “a pandemia tem um impacto muito profundo nas mulheres”, lembrando que são elas que estão na linha da frente da saúde na resposta à doença, dado que 70 por cento dos profissionais de saúde e auxiliares são do sexo feminino. Para além disso, ocupam a maioria dos sectores que foram mais castigados pela crise: “Turismo e comércio são sectores ocupados maioritariamente por mulheres e o mundo não está a viajar nem a fazer grandes compras”, observou Bhatia.

"Mulheres e raparigas aguentam o pior do enorme impacto social e económico da pandemia", disse também o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, adiantando que as mulheres empregadas na economia informal foram as primeiras a ficar em trabalho.

Por esta razão, a pandemia veio sobrecarregar a carga de trabalhos e de cuidados das mulheres, nomeadamente a nível doméstico. Antes da pandemia, as mulheres já dedicavam 4,1 horas nas limpezas de casa, cuidados dos filhos, compras e na confecção das refeições, em contraste com as 1,7 horas dedicadas pelos homens nestas tarefas. Durante o período de confinamento, estima-se que as mulheres tenham dedicado três horas a mais aos trabalhos domésticos.

“Enquanto as mulheres cuidam, os homens repartem o poder”, conclui Soledad Murillo, ex-secretária de Estado para a Igualdade em Espanha, citada por El País.

"Guerra oculta contra as mulheres”

Perante este cenário de maior evidência da desigualdade de género, os dados da ONU indicam que apenas 25 dos países membros activaram medidas específicas para proteger o sexo feminino durante esta crise pandémica.

A ONU considera que esta é uma questão que deve ser vista como “uma pandemia na sombra, um problema de saúde pública como a malária” e António Guterres alerta que “se não agirmos agora, a Covid-19 pode apagar uma geração de frágeis avanços em direcção à igualdade de género”.

Guterres assinalou que a pandemia veio salientar a necessidade de dar um impulso urgente à "promessa não cumprida de Pequim" e de mudar os "sistemas e estruturas do mundo, baseados em milénios de dominação masculina". O mundo precisa de pôr fim a um “aumento horrível da violência contra mulheres e crianças” durante a pandemia Covid-19, acrescentou o secretário-geral da ONU, descrevendo a crise pandémica como uma “guerra oculta contra as mulheres”. “Prevenir e acabar com esta crise requer o mesmo compromisso e recursos que dedicamos a outras formas de guerra”, sublinhou Guterres.

A plena igualdade de género parece ser, porém, uma realidade ainda longínqua.

Em 2017, o Fórum Económico Mundial afirmava que o mundo estava a um século de distância deste cenário, enquanto o Instituto Europeu de Igualdade de Género estima que a paridade de género nos Parlamentos europeus demorará 55 anos a chegar e até 190 nas empresas.

O relatório da ONU Mulheres apela a uma mudança urgente que “só será possível se todos unem esforços e aturarem com determinação para atingir igualdade de género e justiça para todos”.

“As acções que forem tomadas agora pela comunidade global determinarão as perspectivas não apenas da actual geração de mulheres, mas também das gerações futuras”, conclui o documento.

por Mariana Ribeiro Soares – RTP - 2 Outubro 2020